terça-feira, 30 de novembro de 2010

A melhor definição sobre Caio Fernando Abreu





Caio Fernando Abreu morreu, em decorrência de complicações da Aids, em 25 de fevereiro de 1996. Foi uma pena que ele tenha partido naquele momento. Afinal, a despeito do que comumente se pensa, quando se tem 47 anos ainda há muita coisa para viver, para ver, rever e transver. E, no caso de Caio, também ― e principalmente ― para escrever.

Também foi uma pena que sua morte tenha ocorrido num momento profissionalmente tão especial quanto aquele. Desde o início da década de 1990, alguns de seus livros começavam a ser publicados em diversos países europeus, obtendo boa recepção. No Brasil, sua obra ganhava cada vez mais leitores e, finalmente, uma parcela da crítica e dos meios universitários que ainda eram indiferentes a ela começava a dedicar-lhe alguma atenção. Enfim, era um momento ímpar de sua carreira.

Assim, se hoje estivesse vivo, Caio certamente ficaria feliz em ver o interesse cada vez maior por seu trabalho. E talvez ficasse um tanto espantado também. Afinal, ele dizia que sua obra ― assim como ele próprio ― caminhava à margem da literatura brasileira. Via-se como uma figura um pouco atípica no campo das letras, sem ter onde se encaixar. No máximo, no plano literário, identificava certa afinidade e familiaridade com João Gilberto Noll, Sérgio Sant’Anna, Lya Luft e pouquíssimos outros. Além disso, Caio costumava reclamar de que a literatura brasileira era feita de bilhetes e telefonemas oportunos e que não tinha muita paciência para lobbies ou autopromoção. Avesso a esses contatos convenientes e a uma certa "diploma cia literária", teria, desse modo, prejudicado a divulgação de sua própria obra.

Outro motivo que o fazia sentir-se à margem foi a utilização, em seus textos, de temas rotulados como malditos, que lhe valeram a alcunha de um escritor pesado e baixo-astral. "Eu não sou pesado, mas sim a realidade", ele retorquia. Também falava de rock, astrologia, drogas e sexo, entregava-se sem receios à cultura pop, quando isso ainda era considerado uma heresia, tanto à direita como à esquerda, na literatura brasileira. "Na minha obra aparecem coisas que não são consideradas material digno, literário", disse meses antes de falecer. "Deve ser insuportável para a universidade brasileira, para a crítica brasileira assumir e lidar com um escritor que confessa, por exemplo, que o trabalho do Cazuza e da Rita Lee influenciou muito mais do que Graciliano Ramos. Isso deve ser insuportável. Isso não é literário. E eu gosto de incor porar o chulo, o não-literário."

Embora à margem, Caio foi, de fato, um homem das letras: fez das palavras seu ganha-pão (ainda que o retorno financeiro fosse escasso) e sua expressão. Mesmo sem ter concluído um curso universitário, trabalhou, desde o fim da década de 1960, como redator e editor por quase toda sua vida e integrou a equipe de alguns importantes jornais e revistas do país. Sua produção para a imprensa é vasta: artigos, reporta gens, entrevistas, resenhas, críticas e editoriais. É um material que ainda está disperso e que, futuramente, talvez mereça pesquisa e catalogação. Na luta pela sobrevivência, Caio também traduziu livros e, quando era necessário redigir, fazia todos os tipos de trabalhos freelance.

Na literatura, Caio também foi polivalente: escreveu narrativa infanto-juvenil, crônicas, contos, novelas, romances e peças. Entretanto, isso não significa inconstância ou imaturidade artística. Ao contrário, atesta seu hábil manejo da palavra e um bom conhecimento dos gêneros. Como confirma o diretor teatral Luiz Arthur Nunes, seu parceiro na vida e no teatro, ele não se aventurou na literatura dramática por brin cadeira: "Caio era um dramaturgo de fato e não um narrador por diletantismo pondo em diálogo suas his tórias. Ele sabia e dominava a diferença de gêneros".

No entanto, foi como contista que Caio se destacou e ficou conhecido. Aliás, livros de contos são a maioria entre os títulos de sua obra. Não é possível afirmar que Caio privilegiava a escritura de contos em detrimento de outras formas de expressão literária: em entrevistas concedidas ao longo de sua carreira, sempre falava de um ou outro projeto de romance que o acompanhava há tempos. Também não parece que se considerava mais hábil na escritura desse tipo de narrativa: como Luiz Arthur Nunes observou, por exemplo, Caio era um dramaturgo de mão-cheia.

Talvez circunstâncias de sua vida tenham sido responsáveis pela adoção do conto como sua principal forma de expressão literária. Um desses motivos seria a vida quase nômade que levou durante muitos anos, de cidade em cidade, país em país. Carregar, com frequência, mala e cuia de um lado para outro, muitas vezes sem ter sua própria casa, não é um incentivo para um escritor se dedicar a um projeto maior e mais trabalhoso, como, por exemplo, um romance. Além disso, o trabalho na imprensa sugava-o de tal forma que escrever sua ficção era quase uma tourada diária. Numa entrevista, concedida em 1988, Caio reclamou dessa dificuldade. Segundo ele, o escritor brasileiro é um escritor de fim de semana, feriados e horas vagas. Com ele havia acontecido justamente isto: trabalhando loucamente para (sobre) viver, não tinha mais tempo de estudar, de pensar e mesmo de escrever. Assim, não é de se estranhar que o segundo romance de sua carreira ― Onde andará Dulce Veiga? ―, de 1990, ou seja, publicado 19 anos após o seu primeiro romance, tenha saído do plano do imaginário, no qual residia há anos, para o papel somente após Caio ter pedido demissão do jornal em que trabalhava, dedicando-se, assim, integralmente ao projeto.

Se, por um lado, o cotidiano estafante das redações e a luta diária pela sobrevivência tolheram os projetos mais complexos de Caio, levando-o a se dedicar mais aos contos, por outro lado fizeram com que ele desenvolvesse uma habilidade afiada como contista. Como certeiramente comparou Lygia Fagundes Telles, é uma habilidade de encantador de serpentes, atraindo e hipnotizando seus leitores, a despeito dos temas com que eles se deparam na trama dos contos.

Seus contos apresentam ainda outra peculiaridade. Quando Maria Adelaide Amaral comentou as crônicas publicadas durante anos no Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo, ela as classificou como "perturbadoras", nas quais Caio teria fixado "a época, o zeitgeist dos anos 1980, o permanente e o passageiro, modas e eternidades". De certa forma, a mesma afirmação pode ser estendida aos seus contos: também fixaram épocas, modas e eternidades, personagens célebres e anônimos. Embora não sejam textos documentais, os contos apresentam um quê de retrato de época, uma espécie de registro ficcional, por um viés bem peculiar, das últi mas quatro décadas. Não é à toa que, ao falar de si mesmo, Caio gostava de repetir um epíteto que lhe deram: biógrafo das emoções contemporâneas. (...)

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Trecho do prefácio do livro Os Melhores Contos de Caio Fernando Abreu (Global, 2003), escrita por Marcelo Secron Bessa: carioca, graduou-se em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Obteve os títulos de mestre e doutor em Letras (Literatura Brasileira e Estudos de Literatura, respectiva mente) pela PUC-Rio, onde também lecionou no Departamento de Comunicação Social. De 1999 a 2000, esteve como pesquisador visitante na New York University (NYU). É autor de Histórias Positivas (Record) e Os Perigosos (Aeroplano) e organizador, com Jane Galvão e Richard Parker, de Saúde, Desenvolvimento e Política (Editora 34).

Sobre Caio Fernando Abreu e sua obra, escreveu artigos e ensaios, alguns dos quais estão incluídos nos livros Histórias Positivas e Os Perigosos. Na revista PaLavra, do Departamento de Letras da PUC-Rio, publicou uma entrevista com Caio, realizada, poucos meses antes da morte do escritor.

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